Pós-graduado em fotografia pela FAAP, desenvolveu estudos acadêmicos na área de comunicação, com foco em estudos culturais e semiótica. Técnico em Artes Visuais e graduado em Comunicação Social, está em constante atualização nas áreas de música, artes visuais, filosofia e política. Atualmente cursa pós-graduação em Metodologia do Ensino de Artes.
Fotógrafo e designer gráfico, atua no ramo de artes visuais, além de desenvolver trabalhos com composição musical e escrevendo estórias.
Um acontecimento em Guarujá no início desse mês tomou os portais de notícias e redes sociais por vários dias. Uma mulher de 33 anos foi espancada por um grupo de pessoas que acreditava estar diante de uma raptora de crianças e faleceu. Num período de tempo muito curto que se seguiu ao acontecido, muito se falou de maneira muito convicta sobre o caso, desde apelos pela punição dos responsáveis pelo ato realmente brutal, até discursos sobre um eventual efeito de barbárie que estaria surgindo fruto – segundo esses discursos em específico – de posicionamentos como o da jornalista Rachel Sheherazade, após um caso relativamente semelhante no começo do ano, onde um jovem foi amarrado a um poste acusado de furto.
Importante deixar claro aqui que o meu intuito não é abordar nenhuma dessas notícias em específico, ou opinar acerca do pronunciamento da jornalista em questão, mas sim a raiz de todos esses acontecimentos: a barbárie.
Nunca conseguimos nos libertar completamente dos resquícios dela. Entendamos que “barbárie” é a palavra que expressa o significado de “falta de civilização”. O processo de socialização no Brasil é falho, lutamos há muitos anos para tentar estabelecer um ensino universalizado, gratuito e de qualidade, e estamos longe de alcançar essa meta. O portal do Estadão publicou esse mês que o Brasil, segundo o The Learning Curve (“Curva do Aprendizado”, em inglês) realizado pelo The Economist Intelligence Unit junto com a Parson Internacional, ficou em antepenúltima posição num ranking internacional de educação com 40 países analisados, ganhando apenas de México e Indonésia. Vale lembrar ainda que o ranking divulgado no final do ano passado pelo O Globo sobre a classificação das universidades, levantado pela Times Higher Education, aponta USP e Unicamp – nossas melhores universidades públicas – entre os 226º e 350º lugares, mantendo o Brasil fora da lista dos países com universidades dentre as Top 200.
Isso apenas considerando as pessoas que têm algum nível de ensino. Apontemos também o fato de que, embora muito esforço tenha sido feito desde o governo FHC, passando pelos governos PT, para aumentar cada vez mais a quantidade de pessoas na escola, as gerações anteriores ainda se mantém com o nível de ensino defasado. Segundo o IBGE, em 2012, 11,9% dos brasileiros com 25 anos ou mais não tinham instrução nenhuma e 33,5% tinham o ensino fundamental apenas incompleto, o que significa que um número consideravelmente próximo da metade da população a partir de 25 anos não tem o nível de ensino que chamamos justamente de “fundamental”.
Além do ensino já problemático nas escolas, temos também a educação proveniente das bases familiares muito frágeis.
É claro que isso não significa que por não possuir o ensino fundamental, uma pessoa será incapaz de estabelecer uma base familiar estruturada, não é esse o ponto. A questão é a distância que uma sociedade nesse contexto se coloca da construção de uma civilização coerente e bem resolvida culturalmente. A educação, que não se dá apenas na escola, e sim num misto da escolarização e base familiar, tem como objetivo formar seres humanos preparados para o convívio social. Quando as pessoas não têm essa educação, elas automaticamente se desenvolvem fora da convenção estabelecida pela sociedade onde vivem, possibilitando um desenvolvimento social desestruturado e como consequência, a cultura do país como um todo acaba sendo comprometida. Mesmo cidadãos com as melhores situações familiares e escolares têm um convívio social imerso na cultura do país, que se ergue ao redor do comportamento generalizado da população, não individual.
Não é raro ouvir discursos que relacionam a criminalidade à desigualdade social, mas o crime não é exclusividade das camadas mais pobres da sociedade. Todas as fatias sociais estão repletas de casos de desrespeito à lei, que por sua vez é a convenção máxima que distingue pessoas civilizadas – que respeitam as regras em prol do melhor para a sociedade – de bárbaros que simplesmente agem de acordo com suas necessidades em benefício próprio, independente de qualquer convenção social. São incontáveis os casos de corrupção de setores públicos e desvios de dinheiro realizados por grandes empresários, assim como a própria classe média também tem seus casos bastante comuns, seja em sonegação de impostos, jovens falsificando documentos para se aproveitar de benefícios exclusivos para estudantes, desrespeito a patrimônios públicos e/ou privados, relacionamento com drogas ilícitas e etc. O desrespeito à lei não é uma questão de classe social.
Claro que as camadas mais baixas da sociedade estão na linha de frente dessa situação. A deficiência no estágio de socialização é muito mais direta nesse caso, assim como o contato com o crime mais explícito – como o crime organizado – é muito mais próximo e, de certa forma, muito mais tentador, mas reduzir o problema da criminalidade à questão de classes é desonesto. Vivemos imersos na cultura do “jeitinho brasileiro” de levar vantagem, de se vangloriar por burlar as leis alegando para si mesmo que não se está fazendo nada de errado, pois “somos roubados” diariamente – seja pelos governantes, pela corrupção generalizada, ou pelo próprio status quo de desigualdade social – e, como consequência, apenas ocorre uma reivindicação do direito de “roubar de volta”, numa espécie de “justiça social” feita com as próprias mãos e em total descrença ao funcionamento da civilização fundamentada em regras como ela deve ser.
A máxima popular que diz “o mundo é dos espertos” resume, de maneira literal, o significado de “barbárie”.
Nesse contexto temos – sempre falando de um panorama cultural generalizado, o país ainda tem pessoas trabalhadoras e honestas, que merecem todo o reconhecimento por sua conduta – pouquíssimas travas contra o comportamento literalmente bárbaro. Tanto travas morais quanto éticas são muito fracas, uma lógica de “cada um por si” substitui qualquer tipo de convenção de valores, e o que resta é apenas um comportamento de pessoas que simulam ser civilizadas por obrigação, uma vez que há a definição legal de uma punição para o comportamento que não corresponda a essa obrigação. Além disso, mesmo essa punição legal está cada vez mais ameaçada, seja por incompetência administrativa do Estado, falhas no sistema jurídico, ou joguetes político-ideológicos sendo articulados por trás da coisa toda.
Consequentemente, essa “ordem” é muito frágil, e se rompe ao primeiro abalo. Provas disso são as situações caóticas que se deram com paralizações da polícia militar, na Bahia mês passado e em Pernambuco esse mês. Muito se reclama de um caráter “opressor” da nossa estrutura policial, mas ao primeiro sinal de ausência de uma figura controladora, a sociedade explode em sequências caóticas instantâneas de barbárie, quase como crianças cujo professor – que elas já mal respeitam normalmente – sai da sala durante uma prova. Segundo dados do governo, por ano são assassinadas mais de 52 mil pessoas no nosso país. São mais homicídios do que qualquer um dos outros 11 países mais populosos do planeta, tanto em proporção por habitante quanto em números absolutos (dentre os quais estão inclusive Indonésia e México, citados no começo desse artigo por terem sido apontados pelo The Learning Curve como inferiores ao Brasil no quesito educação). É nesse contexto que utilizar um ou dois casos isolados – por mais chocantes que de fato sejam – como pretexto para dizer que o país está “entrando numa onda de barbárie”, ignorando completamente os números que se repetem ano após ano a ponto de não nos chocarem mais, é um ato de extrema inocência ou desonestidade.
Vivemos numa grande panela de pressão prestes a explodir. Qualquer situação mínima que comprometa o pseudo-equilíbrio social com o qual já nos acostumamos, resulta em casos caóticos que não refletem uma sociedade que já se livrou da minimamente da barbárie. Nos acostumamos a sentir medo de andar sozinhos à noite, a culpar a vítima de um latrocínio por ostentar objetos de valor num local “inapropriado” e a erguer muros cada vez mais altos em volta das nossas casas, que mantemos sempre trancadas a sete chaves; nos acostumamos a ver todos os dias notícias de homicídios sem sentido, assaltos e sequestros; nos acostumamos a ver números alarmantes de casos de criminalidade acontecendo ao nosso redor, dando tanta importância quanto damos para a previsão do tempo; mas quando vemos uma situação diferente do “habitual”, algo um tanto quanto “novo” em comparação a tudo o que já nos acostumamos, como foi o caso do trágico linchamento daquela moça no Guarujá, nos assustamos e temos a impressão de que uma coisa “nova” está acontecendo.
Não está.
A barbárie nunca “voltou”, ela apenas está se intensificando a cada dia. Ela está à nossa volta, seja quando temos medo de sair de um banco depois de sacar vinte reais, quando voltamos para o local onde estacionamos o um carro parcelado em 36 vezes e ele não está mais lá, ou quando somos ameaçados por uma arma por causa de alguns trocados. É óbvio que linchar um ser humano até a morte, seja alguém que efetivamente cometeu um crime, ou pior, alguém que supostamente veio a cometer, não é uma atitude nem de longe correta dentro de um Estado de Direito tal qual devemos lutar para manter, é uma atitude igualmente criminosa, mas cabe às pessoas com mais noção do contexto no qual o país está imerso não se esconderem atrás de uma análise parcial dos fatos para embasar um posicionamento ideológico pré-estabelecido quando, na verdade, o problema social, o problema cultural que envolve a situação é muito mais amplo e muito mais complexo do que qualquer apropriação da situação por uma ideologia de luta entre classes.
Todos os crimes devem ser devidamente respondidos perante a lei, seja através de elaborados processos de ressocialização – coisa que muito se fala, mas nada se faz de fato – ou através do sistema prisional precário e clemente há anos por uma profunda reestruturação que possuímos atualmente. Não podemos deixar que nossa cultura continue sendo fundamentada na ideia de que o crime compensa e de que não há motivos para que as leis sejam respeitadas. Devemos sim lutar insistentemente para uma complexa melhoria na nossa educação falha – tanto escolar quanto de bases familiares – para que tenhamos pessoas mais éticas, conscientes do seu papel enquanto cidadãos, e mais capacitadas para gerar seus próprios recursos de maneira lícita; e devemos sim nos preocupar com o nosso sistema prisional falho, que não tem comprometimento nenhum com qualquer tentativa de ressocialização de criminosos e apenas os mantém num estágio intermitente de “castigo”, aguardando para reincidir no crime; são objetivos extremamente necessários, mas ao mesmo tempo, não podemos utilizar essas falhas como desculpa, como uma justificativa para deixar que crimes sejam cometidos livremente, sendo encarados como atos de esperteza, e que a barbárie seja o comportamento cultural padrão de uma sociedade a cada dia menos civilizada.
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